As portas
"If the doors of perception were cleansed, everything would appear to man as it is, infinite"
William Blake
O tempo vai costurando mesmo as nossas vidas. A frase, potencialmente clichê, é perfeita quando penso em trajetórias. Senão, vejamos: Quando eu conheci o grupo The Doors, mais ou menos no ano de 1.997, eu não imaginava que iria lembrar dele toda vez que leio ou ouço algo sobre o escritor William Blake. É certo que William Blake influenciou Jim Morrison e que acabou influenciando a própria criação do The Doors (o nome da banda é inspirado numa frase do escritor). Essa é uma história já bastante conhecida. Exatamente por ser uma história amplamente divulgada, eu , que andava boaquiaberto com a magia da banda americana, fui instigado a saber mais sobre o tal poeta inglês. Uma coisa me levou a outra de tal maneira que hoje me é impossível lembrar de um sem fazer referência ao outro. É assim que funciona (se bem que tem gente que faz questão de esquecer suas referências, ou suas lembranças).
Lembro que finalmente comprei um livro de Blake (O Matrimônio do Céu e do Inferno, Editora Iluminuras) na já extinta Revistaria Possan, lá pelos idos de 2001, com meu suado dinheiro de cobrador. Na época, eu ainda não era chapa do “maluco beleza” Gustavo Possan, o que provavelmente anulou qualquer possibilidade de desconto. Lembrei-me disso porque sempre andava durango, mas não me faltavam livros, revistas e discos novos em casa. Aliás, o pessoal lá de casa sempre me questionava e chegava a brigar comigo por gastar boa parte do meu salário com essas coisas. Eles não entendiam que eu me alimentava disso tudo, mesmo que isso invariavelmente comprometesse minhas finanças e me impedisse, de vez em quando, até mesmo de comprar um simples X-Salada. Mas isso é outro caso, voltemos ao bardo.
William Blake é dono de uma linguagem poderosa, fruto de uma mente brilhante.
Eu reconhecia aquele tom solene, adorava o tempero místico, o acento romântico. Eu ainda era religioso. Contudo, como em Blake, já havia em mim a centelha da rebeldia. Por isso, o título do livro que comprei já fascinava: O Matrimônio entre o Céu e o Inferno. O tom profético da obra é de rara beleza e Blake, apesar de religioso, constrói uma obra dicotômica, fortemente crítica aos dogmas da Igreja, ao puritanismo anglicano e à Inglaterra de seu tempo. Aqueles que tiveram a oportunidade de ler a obra, percebem que sua “mensagem” se dá através de paradoxos, de máximas que se valem de muitas metáforas e de referências arquetípicas religiosas que remetem também ao panteísmo. Um trecho da apresentação ao livro, escrito por José Antonio Arantes, é bem explicativo: “Suas idéias visam a subversão dos conceitos cristãos em nós arraigados, atraindo-nos para a convicção de que a dicotomia (Bem=Alma=Céu; Mal=Corpo=Inferno) é a causa da infelicidade humana. Apenas a integração dessas duas faces seria a fonte da felicidade plena. O recurso usado por ele foi privilegiar a imaginação e relegar a segundo plano a razão, limitadora do Gênio Poético. Faça o que faça a vida é ficção,/ e formada por contradições. A visão recupera a identidade humana, propõe Blake, pois com engenho e arte o homem casa os contrários”.
Está exatamente aí noção de que “sem contrários não há progresso”. A frase é interessante, principalmente do ponto de vista capitalista. Se bem que dependendo da contrariedade, nem tanto, né?
Enfim, William Blake foi uma leitura que durou pouco para mim. Embora seja um escritor formidável, eu acabei me distanciando de seu universo, assim como acabei me afastando dos Doors, que por tantas vezes supervalorizei.
Mas hoje, pensando na antiga oposição Luz X Trevas, que tanto povoa o imaginário cristão, eu me lembrei disso tudo. E de como uma coisa pode levar a outras tão diferentes. Recordei-me das aulas que tive sobre “figuras de linguagem”, das aulas de literatura, das leituras de semiologia, do Yin-Yang e de várias outras coisas. E o que restou disso tudo, afinal?
Sei lá. Só sei que luz eu encontro é nos olhos noturnos do gato na rua, nos postes que me guiam de volta pro lar, no céu estrelado do teto lá de casa, assim como muita gente se encontra na vela, na oração. Luz a gente pode encontrar nos verões, violões e nas fogueiras do passado. Sim, existe luz na memória, embora ela seja também povoada de obscuridade. Minha esposa sabe disso. E é nela (por que não?) que também encontro a fagulha sempre bem-vinda dessa nossa história, repleta de luzes, sombras e escuridão.